Como defender o Brasil de um futuro quente e incerto

Por Carlos Bocuhy, ambientalista e presidente do PROAM
O Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas se rendeu às comprovações sobre tendências de alterações no clima. No início de setembro, admitiu o que muitos cientistas isoladamente já afirmavam: o planeta poderá não aquecer apenas +1,5ºC até o final do século, mas sim entre 2,4º C e 2,6º C.
O Relatório Técnico sobre o Balanço Global do IPCC, baseado na melhor ciência disponível, aponta que, para manter o aquecimento global em níveis mais seguros, as emissões globais precisariam cair cerca de 60% até 2035. Este é um duplo desafio e missão quase impossível. Depende da capacidade de moldar avanços tecnológicos em políticas públicas, com rápida expansão de fontes de energia limpas, ao mesmo tempo em que se promova a diminuição da poluição de fontes fósseis como petróleo, carvão e gás natural.
O problema é que o setor de combustíveis fósseis está resistindo às mudanças, e estas precisam ocorrer no cenário geopolítico da guerra fria, com visível ruptura Ocidente-Oriente, ocasionada pela guerra da Ucrânia. Portanto, o prognóstico para promover grandes alterações globais em apenas 12 anos – que envolvem inovações na infraestrutura para abandono imediato dos combustíveis fósseis – não é nada promissor. 
Além disso, acentua-se a tensão e a cobrança dos países mais pobres com relação a investimentos dos mais ricos para facilitar a transição climática dos emergentes, enquanto capitais privados vêm a destinação de recursos para esses atores como de alto risco. 
Como chegamos a esse ponto? A conclusão do IPCC é que estamos perdendo o timing para que as nações mais poluidoras cumpram a redução proposta no Acordo de Paris. Além disso, a metodologia utilizada para projeções futuras parece não ter sido a mais adequada, com cálculos equivocados de emissões liquidas dos países com lançamento de Gases Efeito Estufa (GEE) maiores do que o esperado. De outro lado, os efeitos do aquecimento, segundo o IPCC, estão produzindo efeitos piores do que se previa.
Segundo alguns cientistas, a leitura do IPCC é conservadora e o número mais próximo da realidade seria o aquecimento de aproximadamente 3º C. Segundo o físico Paulo Artaxo, que pertence aos quadros do IPCC, há forte possibilidade de se atingir a média de +3º C até 2060, a depender da atual resistência da humanidade de fazer, em tempo hábil, a transição energética.
Apesar de alertas dramáticos da Secretaria Geral das Nações Unidas, como “fervura climática” e “à beira do abismo pisando fundo no acelerador”, uma inexplicável zona de conforto envolve a grande maioria da sociedade, respaldando a frase do filósofo australiano Clive Hamilton: “É quase impossível aceitar toda a verdade sobre o que fizemos à Terra”.
Os impactos do clima podem ser ainda piores, pois é preciso compreender a dinâmica do aquecimento planetário “médio”. Como 75% do planeta é constituído por oceanos, portanto superfície líquida, a realidade da temperatura média global estimada em +3ºC incidiria, na região continental ocupada pelo Brasil, em algo em torno de +4ºC ou +4,5ºC. 
Isso significa que, no verão, altas temperaturas ocorreriam em todo cenário tropical-equatorial das regiões geográficas do Brasil, muitas com incidência de calor continuado e diuturno superior aos 36ºC do organismo humano. E representa riscos elevados para a saúde pública. Especialmente para idosos e crianças, longos períodos sem resfriamento produzem incidências de colapso. As ondas de calor extremo nos verões de 2022 e 2023 vitimaram dezenas de milhares de pessoas vulneráveis na Europa. 
O Brasil também precisa estar preparado para a possibilidade de megadesafios econômicos e migratórios neste cenário. A região do Cerrado, forte produtora de commodities, entraria em processo de desertização. Nos dias de hoje, a superexploração de seus aquíferos já começa a dar sinais de esgotamento – especialmente na região do MATOPIBA. No Cerrado o desmatamento ilegal supera o da Amazônia e nos últimos 20 anos a perda de vegetação nativa subiu de 34 para 50%.    Sofreria ainda mais a Caatinga, bioma que apresenta mais de 13% de seu território em processo de desertização.
Em 2019 as previsões de formação de pequenos desertos, chamadas de “áreas susceptíveis à desertificação”, estavam mapeadas em território nacional, apontando riscos para 1.488 municípios (27% do país). Some-se à gravidade desta situação o extrapolamento das temperaturas médias que hoje estão sendo anunciadas pelo IPCC. 
As fontes de equilíbrio hídrico devem ser protegidas com prioridade máxima – especialmente a floresta amazônica, por sua função ecossistêmica de transposição de umidade continental. Fazer cessar o desmatamento e recuperar áreas degradadas serão a grande saída para o Brasil manter sua maior caixa d’agua natural e a conformidade de suas metas de emissão.  
A intempestividade climática, com tornados extratropicais e outros eventos extremos, deve mobilizar o Brasil de forma preventiva. O recente evento ocorrido no Rio Grande do Sul, responsável por uma centena de mortos e desaparecidos, registrou ainda a morte de 30 mil animais no campo e causou enormes prejuízos às cidades atingidas. 
A grande lacuna entre os alertas meteorológicos e as efetivas ações da defesa civil deve ser preenchida por planos de contingência efetivos, ações de desocupação de áreas de risco e firme ação de uma defesa civil operacionalmente eficiente e preparada, ao mesmo tempo em que se viabilizam amplos programas habitacionais e de contenção de encostas para afastar as populações vulneráveis do risco climático.    
A sociedade enfrenta outros desafios. Apesar do cenário climático com ampla comprovação científica, permanecem núcleos de negacionismo climático. Um dos argumentos é a atribuição dos efeitos extremos do clima a eventos sazonais, como vulcões ou manchas solares, ciclos naturais que nada têm a ver com a identificação da tendência de aumento da temperatura decorrente da intensificação da saturação da atmosfera por GEE em função das ações antropogênicas. 
Some-se a isso outros fatores, como a rejeição da ciência por correntes conservadoras, que se afirmam assim como expressão de identidade, ao considerar erroneamente que a ciência climática é promovida pela ecologia política. A isso se associa a campanha negacionista financiada pela indústria de combustíveis fósseis, além de outros lobbies de indústrias, como a automobilística, que resiste ante a imperiosa necessidade de intensificação dos meios de transporte coletivo limpo. As Oil Sisters (as sete irmãs do petróleo), desde os anos 1990, semearam dúvidas para minar a certeza científica. Ainda hoje o setor defende sua sobrevida econômica ocupando espaço nas cúpulas climáticas, sempre semeando esperança em tecnologias de descarbonização da atmosfera que, na prática, são inexistentes ou não são efetivas.     
“Somente comunidades que levem a ameaça climática suficientemente a sério, que coletivamente se preparem para ela, serão capazes de superá-la. Mas em um mundo globalizado, todas as nações são muito interconectadas e interdependentes para se isolar e limitar os efeitos das mudanças climáticas”, afirma o filósofo Clive Hamilton.
O Brasil deve se preparar com difusão do conhecimento científico contra as forças reacionárias e desmobilizadoras do negacionismo, muitas delas mercenárias. A inserção capciosa e desarrazoada de dúvidas atrasa as transformações necessárias e a consecução de políticas públicas. O país deve estar preparado para enfrentar os efeitos do calor, que serão muitos. Entre esses, notadamente proteger florestas e água, conter a desertificação e investir fortemente, de forma preventiva, na proteção de sua população vulnerável ao calor extremo – e na segurança de milhões que habitam áreas de risco.

Via Carta para o Futuro

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