Por João Moreno
Um resumo da obra Metamorfoses do Espaço Habitado, capítulos três, quatro e oito, e do livro Pobreza Urbana.
“O modelo do crescimento capitalista adotado pela maioria dos países subdesenvolvidos, somado à explosão demográfica, resultaram numa explosão urbana e concentração de riqueza e pobreza nas cidades. Pensava-se antigamente que a industrialização capitalista podia trazer uma solução à crise social que gerou. Quando se tornou claro que isso não ocorria, o problema foi atacado por outros meios indiretos, como habitação, educação etc. Mais recentemente, a questão do emprego foi objeto de estudos aprofundados por parte de pesquisadores particulares e instituições governamentais” (SANTOS, 2013, p. 57).
Metamorfoses do Espaço Habitado
Milton Santos foi geógrafo. Doutor pela Universidade de Estrasburgo, na França, publicou extensa bibliografia. Metamorfoses do Espaço Habitado Urbano, de 1988, tem por objetivo ser um local para reflexão dos conceitos geográficos. Numa disciplina que sofre com as variações e transformação dos próprios objetos estudados, o texto de Santos tem (ou parece ter, para um leigo) a preocupação com a caracterização do que era e do que é. Das formas de análise estanque, mas que apresentam, agora, a necessidade de mudar. Sabendo, como bem diz o autor, que esse processo é contínuo, constante, assim como a construção da história.
O livro me interessou pelos capítulos três, quatro e oito. Respectivamente, ‘Metamorfoses do Espaço Habitado’, ‘Categorias Tradicionais’, ‘Categorias Atuais’ e ‘O Espaço e o Movimento das Contradições’.
Assim, o capítulo três apresenta a análise do espaço a partir de uma perspectiva quantitativa e qualitativa da transformação do espaço habitado.
Santos (2014) descreve o tamanho e os motivos do aumento da população mundial ao longo de sua história. Se antes os fatores naturais eram fundamentais para a oscilação desta, as grandes navegações – com a possibilidade de deslocar grande quantidade de comida, de um local a outro – diminuíram os riscos de perdas de lavoura, fome e morte. A industrialização também impactou o contingente populacional, assim como progressos da medicina.
Por um lado, queda da mortalidade. Em países subdesenvolvidos, “crescimento galopante” da população. Milton Santos diz que no período neolítico havia entre 100 ou 120 milhões de pessoas. No início da cristandade, 250 milhões. Quinze séculos depois, na época de Luiz XIV, 545 milhões. Em 1850, 1,2 bilhão de homens. Já em 1950, 2,4 bilhões. Em 1988, quando o livro foi escrito, cinco bilhões.
Vale lembrar que essa ocupação não é heterogênea. Para o autor, a “evolução global da população” só poderia ser compreendida a partir de três perspectivas. 1) Distribuição desigual da população em torno do globo; 2) O pensar os movimentos migratórios – internos e internacionais – para entender o processo; 3) As noções de espaço habitado mudam ao longo do tempo. Seria necessário pensar uma nova forma de pensar o espaço.
Em Metamorfoses do Espaço Habitado, Milton Santos descreve o tamanho da população brasileira ao longo de sua história. Entre 1890 e 1920, a população duplica. Já em 1940 e 1980, triplica. De 70 milhões em 1960 a 135 milhões em 1985.
Em um século, uma humanidade misturada.
É interessante pensar que a partir da segunda metade do século XIX, há uma onda de movimento migratório dos países desenvolvidos aos subdesenvolvidos, em busca de oportunidades [mão de obra mais qualificada do que as antigas colônias?]. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o movimento contrário acontece. Nos países prósperos, serviços considerados insalubres e não bem quistos foram ocupados por imigrantes. (SANTOS, 2014, p. 44-45).
A exploração urbana e metropolitana.
Em Metamorfoses do Espaço Habitado, Milton Santos aponta que a maneira como se assenta uma população muda de um país para outro. A dinamicidade seria um fator importante para a perda de população. “No caso do Brasil, a perda de substância demográfica do Nordeste em favor do Sudeste é notória” (SANTOS, 1988, p. 45). Todavia, o mais importante desse processo é a urbanização.
Milton Santos traz dados interessantes à respeito desse fenômeno. Entre 1800 e 1950, o total de pessoas que moravam em cidades multiplicou-se por 20. Em 1800, 27,4 milhões. Por sua vez, em 1900, 219 milhões. Em 1950, 716 milhões. De três porcento a 30% da população mundial.
Nos países subdesenvolvidos, essa realidade salta aos olhos.
“No caso do Brasil, a população urbana é praticamente multiplicada por 5 nos últimos 35 anos [1953-1988] e por mais de três nos últimos 35 anos [1953-1988] e por mais três nos últimos 25 anos [1963-1988]” (SANTOS, 2014, p. 46).
O autor, à época, ainda destacou a proliferação de grandes cidades entre os países mais pobres. Segundo Metamorfoses do Espaço Urbano, “das 26 cidades mundiais com mais de 5 milhões de habitantes em 1980, dezesseis estão nos países subdesenvolvidos”. (p. 46).
A criação de um espaço geográfico
O geógrafo nos alerta para as mudanças no espaço geográfico, não apenas quantitativas. Os meios urbanos seriam cada vez mais artificiais. “(…) natureza primitiva, crescentemente encobertos pelas obras dos homens. A paisagem cultural substitui a paisagem natural e os artefatos tomam, sobre a superfície da terra, um lugar cada vez mais amplo” (SANTOS, 2014, p. 46).
A lógica é complexa. Ou simples. Com a urbanização, as cidades se ocupam com os segundo e terceiro setor. O desenvolvimento tecnológico – química, genética, mecanização – permite que cada vez menos trabalhadores agrícolas sejam necessários para alimentar um número cada vez maior de trabalhadores urbanos.
“A urbanização ganha, assim, novo impulso, e o espaço do homem, tanto nas cidades como no campo, vai se tornando um espaço cada vez mais instrumentalizado, culturizado, tecnificado e cada vez mais trabalhado segundo os ditames da ciência”.
A lógica apresentada por Milton Santos ancora-se no transporte. “(…) apoiado pela expansão da rede de estradas de ferro e de rodagem que vão assegurar uma circulação mais rápida e relativamente mais barata, sem a qual o abastecimento das cidades se tornaria impossível” (SANTOS, 2014, p. 47).
Como a energia agora se ‘transporta’, haverá um processo contrário ao da Revolução Industrial, que é a possibilidade de desconcentração industrial. Segundo Santos (2014), as mudanças não foram pensadas a partir de uma lógica do bom convívio ambiental. “Tudo isso se dá em um quadro em que as condições ambientais são ultrajadas, com agravos à saúde física e mental das populações. Deixamos de entreter a natureza amiga e criamos a natureza hostil” (p. 48).
Milton Santos, em um parágrafo curto, faz um resumo histórico da relação do homem com o ambiente que o cerca. Ao trazer a atualidade – o texto de 1988 é, sim, atual, – discorre sobre o processo de financeirização da economia e especulação do espaço urbano. Diz o geógrafo:
“O fenômeno se espalha por toda a face da terra e os efeitos diretos ou indiretos dessa nova composição atingem a totalidade da espécie. Senhor do mundo, patrão da natureza, o homem se utiliza do saber científico e das invenções tecnológicas sem aquele senso de medida que caracterizou as suas primeiras relações com o entorno natural. O resultado, estamos vendo, é dramático” (SANTOS, 2014, p. 49).
No capítulo quatro, Milton Santos chama a atenção para as categorias de análise que passaram a obsolescência e para aquelas que continuam atuais. É interessante, aqui, a descrição das relações econômicas, com a internacionalização do Mercado, o enfraquecimento do Estado, e especialização regional do trabalho. Afirma em Metamorfoses do Espaço Habitado:
“Este novo momento da história do homem é marcado pela “crescente internacionalização da economia capitalista com uma total interdependência das diferentes economias nacionais e uma nova divisão internacional do trabalho” (CASTELLS, 1986, p. 7). O mundo, como um todo, tornou-se uno para atender às necessidades da nova maneira de produzir, que passa por cima de regiões, países, culturas etc. Mas, enquanto os processos modernos de produção se espalham por todo o planeta, a produção se especializa regionalmente” (p. 52).
Mais a frente, o autor explica a análise de um mesmo fenômeno em locais diferentes implicaria em resultados diferentes.
Especialização produtiva e aumento da circulação
Segundo Santos (2014), a expansão da rede de transportes e a massificação da comunicação foram as responsáveis pela especialização da produção e o aumento da circulação de pessoas. A especialização tem início quando o transporte possibilita a importação de alimentos de qualquer área do globo. Não precisando produzir alimentos para a subsistência, foi possível que determinadas regiões desenvolvessem produtos e serviços específicos. Antes, o engessamento produtivo. Hoje, a especialização. Em Metamorfoses do espaço habitado aprendemos, ainda, que a partir da especialização houve o aumento do deslocamento entre pessoas atrás de produtos, responsáveis, também, pelo crescimento das cidades.
“Quanto maior a inserção da ciência e tecnologia, mais um lugar se especializa, mais aumenta o número, intensidade e qualidade, dos fluxos que chegam e saem de uma área (…) A diminuição relativa dos preços dos transportes, sua qualidade, diversidade e quantidade cria uma tendência ao aumento do movimento. O número de produtos, mercadorias e pessoas circulando cresce enormemente e, como consequência, a importância das trocas é cada vez maior, pois ela não apenas se avolumam como se diversificam” (SANTOS, 2014, p. 57).
A cidade como lugar revolucionário
As primeiras cidades surgiram por volta de 3500 a.C. Mas seria no período medievo, com a burguesia e os burgos, que ela se diferenciaria do campo, pela “possibilidade do trabalho livre”.
“A cidade aparece, então, como uma semente de liberdade; gera produções históricas e sociais que contribuem para o desmantelamento do feudalismo. Representa a possibilidade do homem livre, da liberdade de escolha, muito embora esta fosse relativa, já que os ofícios eram regulamentados pelas corporações, pelas confrarias.” (p. 59).
A cidade nasce de um movimento de trocas. Renasce com as Grandes Navegações e com a Revolução Industrial, posteriormente. As trocas são fundamentais ao crescimento, assim como às especializações. Lugar de “ebulição permanente” e desenvolvimento científico, foi revolucionária, uma vez que foi o local do trabalho livre.
Após essa breve introdução, Santos (2014) afirma que não é mais possível pensar a cidade – e a sua dicotomia com o campo – a partir das categorias de análise antigas. O modelo anterior (rede urbana, com uma grande cidade e cidades menores, hierarquicamente dispostas) foi abolido pelo próprio Milton Santos, em trabalho de 1975. Nas novas categorias de análise, a questão hierárquica assume uma perspectiva holísticas, integrada, diante dos fatores já mencionados. As trocas não são vistas de maneira hierárquica, apenas – cidade pequena faz trocas comerciais com cidades médias que faz trocas com cidades grandes etc-
A nova hierarquia urbana se forma diante de configuração processada ao longo do tempo. O transporte e a comunicação apresentam “grandes avanços nos países subdesenvolvidos”. Aqui, Milton Santos aponta a versatilidade de transportes – ônibus e automóveis – como características positivas em relação a modelos fixos de mobilidade – trens. A partir da expansão das estradas e dos preços competitivos do combustível, o consumidor passou a ir atrás dos produtos, onde quer que eles fossem produzidos.
Santos, contudo, já alertava. “(…) os que fazem essas viagens de consumação são os que dispõem de mobilidade. Essa mobilidade no território é, aliás, negada aos que dispõem de menos renda” (p. 62)
Aqueles que não podiam se deslocar regularmente iam e ficavam de vez. A televisão tem papel importante por criar novas formas de consumo. As pequenas cidades, por não terem preços competitivos, perdiam habitantes. Conclui Santos:
“A migração, em última instância, é, sem paradoxo, consequência também da imobilidade”. (SANTOS, 2014, p. 63).
Pobreza Urbana
Em Pobreza Urbana, Milton Santos faz, com excelência, um trabalho de desconstrução e construção. Isso quer dizer que, no texto, o geógrafo aponta as armadilhas ao seu objeto de estudo, fazendo um longo percurso de pesquisas bibliográficas – com mais de 40 páginas -, mostrando os equívocos nas diferentes áreas da Ciências Humanas e Sociais ao caracterizar, delimitar, propor hipóteses etc sobre o tema. Começa o autor:
“A abordagem do problema da pobreza nos países subdesenvolvidos é cheia de dificuldades e ciladas. As dificuldades são encobertas pelos deficientes instrumentos de pesquisa, tais como estatísticas e classificações duvidosas, enquanto a confusão a respeito dos objetivos e as formulações teóricas falsas ou incompletas representam verdadeiras arapucas” (SANTOS, 2013, p. 13).
Milton Santos, em 1978, época em que o livro foi escrito, sabe que a pobreza é um problema atual. Geral, ainda assim atinge com mais impactos os países ditos “subdesenvolvidos” [posteriormente, emergentes]. O geógrafo trabalha a questão da urbanização, que é seguida pela pobreza, com particularidades em cada país.
Para Santos, a pobreza sobre em seu processo de caracterização e definição. Definições unicamente estatísticas não trabalham com a realidade. A adoção de modelos de países, também. Em Pobreza Urbana fica claro a limitação de certos conceitos, para a bibliografia, como urbano e terceirização. Há, ou havia, na época, uma incapacidade de desenvolver um modelo que atenda às especificidades necessárias, [a pobreza] deveria ser avaliada atentando para as especificidades de cada região.
A primeira definição complexa aparece na página 19. “(…) o termo pobreza não só implica um estado de privação material como também um modo de vida – e um conjunto complexo e duradouro de relações e instituições sociais, econômicas, culturais e políticas criadas para encontrar segurança dentro de uma situação insegura. “(BUCHANAN apud SANTOS, 2013, P. 18-19).
Não se trataria, pois, de apenas uma categoria econômica, “mas também de uma categoria política acima de tudo. Estamos lidando com um problema social” (SANTOS, 2013, p. 18).
A partir daqui, o autor vai desmantando as explicações existentes. O primeiro algo foi o desenvolvimentismo aliado ao planejamento. Era necessário crescer, mesmo que o “crescimento” não fosse bem delimitado. Para Santos (2013), o problema dos teóricos do desenvolvimento estava em, ao criarem teorias que explicassem a pobreza, criavam, antes disso, modelos do que fazer. Montavam uma realidade ‘irreal’, e o problema persistia.
Nesta primeira parte é importante frisar que havia vasta literatura sobre a pobreza: “da extrema privação em que vivem atualmente milhões de indivíduos” (p. 20). O que faltava aos “aspectos da pobreza vinculados à urbanização” eram textos que trabalhassem de forma complexa como ela era criada, como funcionava e evoluía.
“Há muitas maneiras de esquivar-se ao problema da pobreza (…) Já não se afirmou que o pobre pode melhorar sua situação através do esforço individual, da iniciativa pessoal ou da educação? É dessa maneira que se se alimenta a esperança da mobilidade ascendente, justificando, ao mesmo tempo, a sociedade competitiva. Assim, a pobreza é considerada apenas como uma situação transitória, um estágio necessário na mobilidade social, evitando-se procurar ideias para mudar esse estado de coisas. A podreza deve ser tolerada como “inerente às agruras do crescimento econômico”. (SANTOS, 2013, p. 21).
Para Santos, há aqueles que imputam a pobreza ao fenômeno da urbanização e a explosão demográfica. Tal perspectiva, para o geógrafo, tornou-se “slogans”, repetidos exaustivamente pelos Meios de Comunicação, totalizando a Opinião Pública e, até, as pesquisas e pesquisadores.
Para Milton Santos, era preciso, urgentemente, em 1979, de uma teoria adequada.
Contudo, antes de apresentar o seu posicionamento acerca do fenômeno, Milton Santos detém-se sobre as explicações parciais da pobreza urbana, em seu capítulo dois. Milton Santos é um derrubador de mitos! Cita as questões climáticas, perspectiva defasada até aos leigos. Ao tratar a educação como peça-chave à diminuição da desigualdade e da pobreza, dá um soco no estômago de todos nós, que estamos permeados pelo senso-comum.
Para o autor, quando relacionamos educação e diminuição da pobreza estamos relacionado uma coincidência com uma situação causal, de causa e efeito. Haveria, então, a falsa sensação de controle sobre os processos educacionais, sobre o que estudar, como se estes não fossem, como são, controlados pelos processos de produção. Ao afirmar a educação como peça fundamental da pobreza, não levaríamos em consideração, segundo Milton Santos, a defasagem entre o que é necessário – em termos de educação para esse setor produtivo – e o que é oferecido. Haveria, aqui, uma grande volatilidade a qual os países do Terceiro Mundo estariam em constante desvantagem, sem conseguir adequar os interesses educacionais às necessidades.
“(…) os pobres como se tivessem algum poder de decisão sobre a qualidade e o tipo de educação que lhes é destinada, e como se o processo de educação não fosse, ele próprio, condicionado pelas necessidades a produção.” (SANTOS, 2013, p. 23).
Ao falar mais uma vez da urbanização como fenômeno responsável pela pobreza urbana – o autor também problematiza a migração – , diz ser comum não percebermos tais circunstâncias como um epifenômeno: um produto acidental de um processo, de um fenômeno essencial.
Assim, a urbanização e a migração seriam epifenômenos da própria modernização (e modernização vai ser o ponto chave, do autor, à respeito da pobreza urbana). Diz Santos (2013):
“O grande erro é considerar a urbanização como uma variável independente e não o que ela realmente é: um epifenômeno. Com efeito, a cidade é o lugar privilegiado do impacto das modernizações, já que estas não se instalam cegamente, mas nos pontos do espaço que oferecem uma rentabilidade máxima. O processo é velho, mas agravou-se recentemente (p. 26).
Mais à frente, ao rebater o posicionamento de um dualismo tecnológico – a sociedade dividida entre dois setores tecnologicamente opostos, moderno e não moderno, independentes, sendo o pólo rico um “território exterior” ao segundo – como responsável pelo não emprego, Santos (2013) adianta o que teoriza à respeito da pobreza. A sociedade dividida em circuitos – inferior e superior – sendo estes opostos um ao outro, interdependentes, não estático ou estamental, separados pela tecnologia, capital, grau de modernização, relações de consumo e produção.
“(…) Toda a economia e toda a sociedade estão penetradas por elementos de modernização, se bem que em diferentes níveis quantitativos e qualitativos. Em seguida, não se pode considerar os dois setores como se fossem separados, independentes ou autônomos. É antes a modernização, pela forma que assume em pleno período tecnológico, que é responsável pelo desenvolvimento do subemprego e da marginalidade” (SANTOS, 2013, p. 28).
Ainda dando continuidade às explicações parciais, Santos (2013) conclui que a crise da pobreza urbana seria uma crise global; a crise urbana, um epifenômeno.
“As condições nas quais os países que comandam a economia mundial exercem sua ação sobre os países da periferia criam uma forma de organização da economia, da sociedade e do espaço, uma transferência de civilização, cujas bases principais não dependem dos países atingidos. As raízes dessa “crise urbana” encontram-se no sistema mundial”. É, portanto, nesse nível que se podem encontrar explicações válidas. É necessário voltar-se para as raízes do mal, para fazer uma análise correta e estar em condições de fornecer soluções adequadas.” (SANTOS, 2013, p. 31-32).
No capítulo três, Milton Santos se dispõe a discutir a teoria da marginalidade. Diz que o conceito marginalidade fora criado por sociólogos latino-americanos com “a benção das instituições e universidades internacionais”. Uma espécie de slogan, não trouxe teorizações substantivas e que apontassem para a solução dos problemas da pobreza. Seria necessário estudar os processos para, então, propor políticas públicas, escreve Santos (2013) o “óbvio ululante”.
O termo marginalização tem a ver com marginal, população à margem do processo, inútil, excedente. Na opinião de Santos (2013), contudo, seriam incorretas as nomenclaturas e significados.
“É incorreto contrapor marginais à sociedade global, porque esta não pode ser definida sem os pobres “que constituem a maioria numérica, embora minoria sociológica” (DELGADO, 1971, p. 165 apud SANTOS, 2013, p. 36). Os pobres “não são socialmente marginais, e sim rejeitados; não são politicamente marginais e sim reprimidos” (GUNDER, 1996, p. 1 apud SANTOS, 2013, p. 36).
Diz ainda:
“Longe de ser afuncional, a “massa marginal” desempenha um papel no processo de acumulação, não só a nível local como também a nível nacional, mas, acima de tudo, em escala mundial. Aquilo que Salama ainda denomina de “terciário” nos países desenvolvidos “têm um papel regulador da economia mundial […] uma causa e consequência de reprodução da economia mundial como estrutura hierárquica” (SALAMA, 1972, p. 179 apud SANTOS, 2013, p. 39).
A formação do salário nas atividades modernas também coloca em risco a tese da “massa marginal”. As enormes possibilidades de trabalho da “massa marginal” pesam fortemente sobre o mercado de trabalho não intelectual no circuito moderno e baixam os salários. Implica, ao mesmo tempo, um aumento do excedente do empresário, e também um aumento na taxa de lucro. Portanto, não se pode concordar com Num [teórico] quando afirma que a “massa marginal” é afuncional ou disfuncional. Ao contrário, ela tem um papel preciso no funcionamento da fase atual do sistema capitalista, porque facilita a acumulação no centro e na periferia.” (SANTOS, 2013, p. 39-40).
É neste capítulo que Milton Santos reafirma rejeitar teorias que não levassem em consideração a modernização, tanto a nível regional quanto nacional e internacional, além dos efeitos desta sobre a economia urbana dos mais pobres e o modo de relacionamento dela com a economia moderna. O que Santos (2013) descreve aqui é os efeitos modernizantes no espaço urbano, na divisão – não apenas geográfica – das cidades em circuitos modernos e circuitos mais pobres: superior e inferior. Essa relação seria a responsável pela pobreza urbana.
“Ainda está por completar-se a análise das relações entre o “exército industrial de reserva” ou “superpopulação relativa” e a economia global; ou entre a economia moderna e a população pobre. É é justamente aí – acreditamos – que se encontra a chave para a teorização e a pesquisa de soluções verdadeiras” (SANTOS, 2013, p. 42).
A sua perspectiva – circuito superior e inferior – foi pensada como modo de análise para qualquer cidade, não apenas para aquelas de Terceiro Mundo, pois o fenômeno da pobreza é universal. Todavia, o processo de urbanização e a formação histórica de cada país determinará a maneira pela qual esses circuitos se organizam.
“É claro que se deve fazer uma distinção entre países dotados de uma civilização urbana antiga e os que só recentemente ganharam o fenômeno da modernização. Nos primeiros, a modernização cria novas estruturas que se impõe diretamente sobre as estruturas já existentes nas cidades e provocam modificações. No caso dos segundos, a modernização cria concomitantemente as duas formas integradas de organização econômica. Em ambos os casos, está presente o fenômeno dos dois circuitos. Mas não há dualismo nisso, os dois circuitos têm a mesma origem, o mesmo conjunto de causas e são interligados; Não obstante sua interdependência aparente, o circuito inferior é, de fato, dependente do circuito superior” (SANTOS, 2013, p. 42).
Milton Santos afirma que não se pode estudar a economia urbana de maneira ‘desagregada’. Esses dois circuitos, interdependentes, em que o primeiro subordina o segundo, deveriam ser estudados juntos. É o resultado dessa relação de interdependência, diante da modernização, o responsável pela questão da pobreza urbana.
Mas como a modernização tem início?
“A modernização atual, uma consequência do modelo tecnológico, é impulsionada pela força da grande indústria, representada pelas corporações multinacionais. É ainda motivada pelo novo peso da tecnologia (que atribui certa autonomia à pesquisa dentro do sistema) e por elementos de apoio, tais como as formas modernas de difusão da informação.
As repercussões desse novo período histórico sobre os países subdesenvolvidos são múltiplas e profundas. Pela primeira vez na história, variáveis elaboradas fora do país usufruem de uma difusão geral em grande parte do território e entre a maioria da população, se bem que em diferentes graus. A difusão da informação e novas formas de consumo constituem dois importantes dados da explicação geográfica. Suas repercussões são, ao mesmo tempo, geradoras de força de concentração e de dispersão. Essa dialética define as formas de organização do espaço. A revolução na área dos consumo tem sido acompanhado de uma mutação da estrutura do consumo, incluindo novas formas de produção e de troca.
Considerando o progresso tecnológico atual, a indústria cria apenas um número limitado de empregos, porquanto é “capital intensivo”. Além do mais, uma boa parte de emprego indireto é criado nos países centrais ou a partir deles. A agricultura também se moderniza: industrializado-se, expulsa sua população. Isso explica o êxodo rural e a chamada urbanização terciária. Uma alta porcentagem da população fica sem atividade e sem salário permanente, o que, por sua vez, resulta na deterioração do mercado de trabalho.
A sociedade urbana é dividida entre aqueles que têm acesso às mercadorias e serviços numa base permanente e aqueles que, embora tenham as mesmas necessidades, não estão em situação de satisfazê-las devido ao acesso esporádico ou insuficiente ao dinheiro. Isso cria diferenças quantidades e qualitativas de consumo.
Os pobres não têm acesso a um grande número de mercadorias modernas. Os mais pobres só podem obter bens de consumo corrente através de um determinado sistema de distribuição frequentemente complementado por um mecanismo de produção igualmente específico. Esse sistema surge em resposta às condições de pobreza em que vive uma grande parte da sociedade” (SANTOS, 2013, 56-57).
Ao falar sobre as diferenças fundamentais entre circuitos, o geógrafo traz o capital, a tecnologia e a forma de organização, entre outras coisas, como pontos principais. Assim, o circuito superior seria o oposto do inferior. Se o primeiro é tecnológico, o segundo vai contar com mão de obra manufaturada, por exemplo. Se um é automatizado, o outro trabalha com grande quantidade de pessoas. Um adendo: Santos aponta o Estado como mecanismo fundamental para a perpetuação do circuito superior – “apoiam-se direta ou indiretamente na ajuda governamental (…) O Estado poderia ser considerado um elemento do circuito superior” (SANTOS, 2013, p. 52) –
A teorização de Milton Santos quer dizer, então, que não seria possível estudar a cidade – e, consequentemente, a pobreza -, sem pensarmos na modernização e, resultante desta, a dicotomia entre os circuitos, superior e inferior, “responsável pela definição social e econômica e pelas possibilidades e formas de evolução tanto do organismo urbano como de sua área de influência” (SANTOS, 2013, p. 53).
Ao pensar a economia urbana e propor uma teoria à pobreza, Santos (2013) os traduz em uma tabela comparativa partir de valores específicos. Aponta o geógrafo:
CIRCUITO SUPERIOR | CIRCUITO INFERIOR | |
Tecnologia | Capital-intensivo | Trabalho-intensivo |
Organização | Burocrática | Primitiva |
Capitais | Importantes | Reduzidos |
Emprego | Reduzido | Volumoso |
Assalariado | Dominante | Não obrigatório |
Estoques | Grande quantidade e ou alta qualidade | Pequena quantidade, qualidade inferior |
Preços | Fixos (em geral) | Submetidos à discussão entre comprador e vendedor (haggling) |
Crédito | Bancário institucional | Pessoal não institucional |
Margem de lucro | Reduzida por unidade, mas importante pelo volume de negócios. Exceção: produtos de luxo | Elevada por unidade, mas pequena em relação ao volume de negócios |
Relações com a clientela | Impessoais e ou com papeis | Diretas, personalizada |
Custos fixos | Importantes | Desprezíveis |
Publicidade | Necessária | Nula |
Reutilização de bens | Nula | Frequente |
A partir de Santos (2013, p. 61 e 62).
Mas como fugir dessa dualidade? Milton Santos alerta para as fáceis teorizações. Injetar modernização não resolveria o problema do circuito inferior, perguntamos todos. Para o geógrafo, não. A maneira como o circuito inferior está organizado diz respeito à lógica de organização do circuito superior. “(…) diretamente ligada à maneira pela qual o circuito superior opera em todos os níveis. local, nacional, e internacional” (p. 70). Continua Santos (2013).
“(…) a economia urbana da pobreza, isto é, o circuito inferior, é explorada pelo outro setor através das condições do comércio que limita a capacidade dos pequenos fabricantes de se desenvolverem coletivamente durante períodos prolongados. Na verdade, é preciso ir ainda mais longe, pois a provável função essencial do circuito inferior é difundir o modo capitalista de produção entre a população pobre através do consumo e absorver, para o circuito superior, a poupança e a mais-valia das unidades familiares por intermédio da máquina financeira de produção e de consumo. Vários são os canais de transmissão formais e informais: agências bancária, cooperativas, firmas, construtoras de residências e o próprio Estado, através do duplo canal da taxação e da distribuição desigual de recursos. Todos esses constituem instrumentos que despejam a mais-valia nos bancos e nas poderosas empresas nacionais e estrangeiras” (p. 70).
Assim, para o geógrafo, uma mudança, uma “melhoria no sistema de trocas”, resolveria muito pouco a questão da pobreza urbana, tema que decidiu dissertar. Seria necessário uma mudança estrutural. Um circuito inferior menos inferior na medida em que o circuito superior fosse menos superior.
“(…) a modernização tecnológica produz crescente disparidade econômica e social. Em nome do progresso e à custa de uma injustiça cada vez maior, uma importante parcela dos recursos nacionais são distribuídos de maneira a beneficiar aqueles que já são ricos . Assim, estabelece-se um círculo vicioso: à medida que a renda continua a se concentrar, o consumo dos grupos de alta renda diversifica-se cada vez mais e o desenvolvimento do perfil da demanda torna-se ainda mais inadequado, produzindo uma subutilização de fatores de produção. Os pobres sofrem dupla desvantagem, pois apenas têm acesso aos produtos que os empresários consideram lucrativos enquanto que simultaneamente a produção de bens de consumo popular vai diminuindo. Isso também provoca o aparecimento de um teto do emprego e limita a seleção daqueles que podem associar-se ao processo de modernização.
Portanto, as desigualdades de renda são mantidas, através de uma estrutura de produção orientada para os ramos que mais se beneficiam da modernização tecnológica e que, consequentemente, são os mais rentáveis. Como o setor capitalista não está em posição de transferir uma quantidade suficiente de capital para o setor doméstico, observam-se baixas cumulativas da renda das pessoas ocupadas neste setor.
Nas atividades de tecnologia intensiva, o emprego de trabalhadores altamente especializados exige o pagamento de salários elevados. Esses trabalhadores não são facilmente substituíveis, o que lhes dá um poder de barganha muito grande. Em São Paulo, 20,8% dos trabalhadores da indústria siderúrgica recebiam, em 1968, mais de Cr$ 370, 00 mensais, salário esse alcançado apenas por 6% dos trabalhadores da indústria têxtil. Na Colômbia, a faixa de salários médios de trabalhadores especializados varia de vinte para um nas indústrias de petróleo de vestuário. No Chile, o salário médio dos trabalhadores especializados na indústria metalúrgica de base é 19 vezes maior do que na indústria madeireira.
Nessas condições, a expansão limitada das classes médias e de sua capacidade de consumo surge como um elemento de luta e de afirmação de setores capitalistas modernas não obstante a interpretação de dados disponíveis leva à conclusão de que até mesmo essa expansão foi desacelerada recentemente a mobilidade social ascendente é seletiva e discriminatória resultado a impressão mais intensa sobre os níveis salariais das classes baixas o crescimento da classe média na distribuição da renda mais igual ao contrário torna-se menos igual
O crescimento é oligárquico e não igualitário, pois beneficia apenas uma minoria. A melhoria das condições de alguns não é significativa do ponto de vista social, visto que a renda per capita da população ativa aumenta a pena nos grupos de rendas mais elevados. Os empregados em setores estratégicos usufruem um direito de maior participação no produto obtido na produção capitalista em troca de seu engajamento prévio na sociedade de consumo.
Não é difícil, pois, compreender porque os sociólogos da América do Sul aplicaram o termo marginal às massas deserdadas, vítimas da evolução da produção capitalista . Queriam chamar a atenção para o problema da pobreza, justaposto à modernização. Em consequência, elaboraram uma teoria em torno do tema marginalidade.
(…) O que houve foi uma destruição do processo de desenvolvimento através da modernização tecnológica, impedindo a participação dessa parcela da população denominada por McGee (1972) de “protoproletariado”
(…) As firmas que controlam a produção controlam também o consumo, que é uma junção da renda e do crédito. Dessa maneira, subir na escala do consumo torna-se, paradoxalmente, um dos objetivos da “expectativa de ascenção”, esse novo tipo de ethos imposto ao cidadão comum por aqueles que acumulam cada vez mais, “supranacionalmente”, os benefícios do trabalho de todos.
Defender o “consumismo” pode ser uma hábil manobra política ou uma forma de oportunismo sofisticado, com o qual provavelmente se pode conquistar o povo e ganhar o poder, sem, contudo, mudar fundamentalmente a estrutura do poder – isto é, sem colocar o povo no poder. Como Paulo Freire salientou de forma tão sagaz, o problema da pobreza não é uma questão de integrar a população pobre em uma estrutura repressiva a fim de que possa tornar-se mais parecida com o opressor, mas, sim, de transformar essa estrutura de maneira que cada indivíduo seja o que é.
Enfrentamos, portanto, um dilema: ou perpetuamos esse modo de consumo e ajudamos os gigantes da indústria e do comércio, que de forma tão frequente são considerados “opressores”, ou a fim de eliminar sua dominação, advogamos a causa da mudança nos objetivos da produção , isto é, da própria estrutura de produção. Sem essa última medida, é impossível mudar a estrutura do consumo. Impõe-se, desse modo, como tarefa preliminar, definir os modos de consumo e a estrutura de produção que permitirão o aparecimento de uma sociedade igualitária, uma sociedade na qual ninguém seja dominado para que outros possam perpetuar seu papel de dominadores” (SANTOS, 2013, p. 81-84).
REFERÊNCIAS
SANTOS, Milton. Pobreza urbana. São Paulo: Edusp, 2013.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Edusp, 2014.
LITERATURE-E
Que prazer enorme estar por aqui! Em nosso blog, temos outros artigos (reportagens) nos quais discutimos a questão da urbanização e da propriedade privada a partir de uma perspectiva histórica.
Deixo os links abaixo.
Grande abraço.
https://literatureseweb.wordpress.com/2020/03/17/um-pouco-de-ar-por-favor-a-colonizacao-da-terra-e-a-moradia-na-era-das-financas/
https://literatureseweb.wordpress.com/2020/03/17/um-pouco-de-ar-por-favor-o-pais-nao-passava-de-uma-grande-fazenda/
CurtirCurtir
João Moreno, eu que agradeço tamanha contribuição à Ecologia dos Saberes.
CurtirCurtido por 1 pessoa